sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

98 - 2XNELSON - BOCA DE OURO

Inacreditavelmente, a peça foi feita em seis semanas. Eu me sentia plenamente potente. Estava mais uma vez apaixonado por uma mulher e por um projeto e pelo teatro. Lançava-me a algo completamente novo: a experiência de " ter" um espaço para criar. "Boca de Ouro" fazia parte de um momento especialíssimo na minha vida: eu havia conseguido fazer "O Barão...", estava dirigindo um mega-espetáculo, chamado Fronteira de Fogo, com mais de cem atores, na cidade de Osório, numa experiência ímpar. Eu ia e voltava todos os dias durante mais de dois meses. Estava trabalhando como ator em dois curtas: "Oitavo Selo", primeiro trabalho do queridíssimo e maravilhoso Tomás Créus, e "O Velho do Saco", onde fui dirigido por Milton do Prado e Amabile Rocha. Enorme sorte que tive de trabalhar comn diretores que trataram com enorme gentileza a minha falta de experiência diante da câmera. Estava atuando em "O Beijo no Asfalto" e atuando em "Intestino Grosso" curta de Augusto Canani, que adorei fazer. Experiência maravilhosa. Me entreguei totalmente (pelo menos é o que acho) na construção de uma personagem que correspondesse ao que queria o diretor. Acho que era o primeiro curta do Canani (talvez fosse o segundo), mas ele sabia exatamente o que queria. E, em todo tempo que sobrava eu estava no novíssimo espaço do Depósito de Teatro, que até então era chamado de Depósito porque não tínhamos um nome melhor, dirigindo meu "Boca de Ouro".´
O resultado foi assustadoramente superior ao esperado. É certo, que enormes correções de entrada e saída e movimentação geral foram ajeitadas e melhoradas durante a temporada. Mas assim eu acho que é o teatro: um organismo vivo que pode e deve aperfeiçoar-se durante toda a sua existência. Mais ou menos o que acho que o homem deve fazer com sua própria existência. Mais ou menos o que tento fazer com minha vida. Tento ser um homem melhor e aprofundar-me na arte que escolhi para me expressar.
Fazer o "Boca..." foi uma dádiva. Trabalhei com atores dedicados e que também pareciam estar vivendo uma fase especial nas suas vidas. Sérgio Etchichury, simplesmente brilhante na sua composição e doação na construção de um Boca de Ouro, cínico, cruel e completamente sedutor nas três versões da história. Os homens se identificavam com sua objetividade com as mulheres. O Boca do Serginho era o cafajeste idealizado por todos os homens. As mulheres deliravam. Apaixonavam-se imediatamente. O Serginho criou o anti-herói que o Boca era. Maravilhoso. Acertadamente contemplado com a Açorianos de Melhor Ator daquele ano.
Uma dupla incadescente: Paulo Vicente - meu ator fetiche, adoro trabalhar com o Paulo, acho que ele é simplesmente o máximo - e Sandra Possani, a mais maravilhosa atriz com quem tive oportunidade de trabalhar. Eles eram Agenor e Dona Guigui. Paulo Vicente havia trabalhado comigo em "Abajur Lilás", e a Sandra, vinha do "Barão". Ele tinha detonado na pele do viado Giro, e a Sandra, que conquistou o público no papel da enlouquecida Batista, irmã do Barão.
Outra dupla importante era formada por Álvaro Rosacosta e Maria Falkembach, que viviam o casal Leleco e Celeste. Álvaro, como sempre numa atuação impecável, mas daquela vez ele ainda alcançava notas mais elevadas e atingia o brilhantismo na metódica construção que fez para Leleco. Maria, com total confiança e amor na direção e no diretor, entregou-se inteiramente na construção dedicada das suas três Celestes, pois a história é recontada três vezes, e a cada vez, Celeste e Leleco aparecem para o espectador sob um aspecto diferente. Aliás, todos os personagens se modificam a cada versão da história. Fato que faz de "Boca de Ouro" uma peça que parece ter sido escrita especialmente para demonstrar o poder de transformação dos atores. Nelson Rodrigues criou uma peça que traz em si uma dificuldade, um desafio, para os atores que a representam.
Outro núcleo era formado pelos jornalistas: Vinicius Petry, o editor, Rodrigo Ruiz, o fotógrafo, e Tuta Camargo na pele do repórter Caveirinha. Só não digo que foi o melhor papel que representaram em toda suas vidas com o atores porque isso seria desprezar a evoplução de cada um destes artistas, mas sei que cada um deles, viveu intensamente o projeto e doou-se com amor, prazer e dedicação. O Vini e o Tuta vinham do "Barão". Rodrigo vinha de "Agora é Festa". Os três atiraram-se de corpo e alma na montagem. O Vini compôs nosso samba enredo. O final da peça era simplesmente maravilhoso. Completamente surpreendente. Quando entrava em cena a escola de samba que estava ensaiando durante todo o decorrer do espetáculo, traduzindo a história da peça num samba enredo de uma hipotética escola da samba carioca, o público delirava de prazer. Era o inesperado. A surpresa.
Desculpem a falta de modéstia, mas os deuses do teatro conspiraram para que nossa montagem de "Boca de Ouro" atingisse um ápice e se constituísse naquilo que eu chamo de acontecimento teatral único.
Muito depois, assistindo a montagem do Zé Celso apresentada no Theatro São Pedro, tive o prazer de receber os cumprimentos de várias pessoas que enxergavam qualidades superiores na nossa encenação. A peça do Zé era linda. Espetacular. Mas o ator principal enterrava a peça ao construir um Boca vazio.

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