
O resultado foi assustadoramente superior ao esperado. É certo, que enormes correções de entrada e saída e movimentação geral foram ajeitadas e melhoradas durante a temporada. Mas assim eu acho que é o teatro: um organismo vivo que pode e deve aperfeiçoar-se durante toda a sua existência. Mais ou menos o que acho que o homem deve fazer com sua própria existência. Mais ou menos o que tento fazer com minha vida. Tento ser um homem melhor e aprofundar-me na arte que escolhi para me expressar.
Fazer o "Boca..." foi uma dádiva. Trabalhei com atores dedicados e que também pareciam estar vivendo uma fase especial nas suas vidas. Sérgio Etchichury, simplesmente brilhante na sua composição e doação na construção de um Boca de Ouro, cínico, cruel e completamente sedutor nas três versões da história. Os homens se identificavam com sua objetividade com as mulheres. O Boca do Serginho era o cafajeste idealizado por todos os homens. As mulheres deliravam. Apaixonavam-se imediatamente. O Serginho criou o anti-herói que o Boca era. Maravilhoso. Acertadamente contemplado com a Açorianos de Melhor Ator daquele ano.
Uma dupla incadescente: Paulo Vicente - meu ator fetiche, adoro trabalhar com o Paulo, acho que ele é simplesmente o máximo - e Sandra Possani, a mais maravilhosa atriz com quem tive oportunidade de trabalhar. Eles eram Agenor e Dona Guigui. Paulo Vicente havia trabalhado comigo em "Abajur Lilás", e a Sandra, vinha do "Barão". Ele tinha detonado na pele do viado Giro, e a Sandra, que conquistou o público no papel da enlouquecida Batista, irmã do Barão.
Outra dupla importante era formada por Álvaro Rosacosta e Maria Falkembach, que viviam o casal Leleco e Celeste. Álvaro, como sempre numa atuação impecável, mas daquela vez ele ainda alcançava notas mais elevadas e atingia o brilhantismo na metódica construção que fez para Leleco. Maria, com total confiança e amor na direção e no diretor, entregou-se inteiramente na construção dedicada das suas três Celestes, pois a história é recontada três vezes, e a cada vez, Celeste e Leleco aparecem para o espectador sob um aspecto diferente. Aliás, todos os personagens se modificam a cada versão da história. Fato que faz de "Boca de Ouro" uma peça que parece ter sido escrita especialmente para demonstrar o poder de transformação dos atores. Nelson Rodrigues criou uma peça que traz em si uma dificuldade, um desafio, para os atores que a representam.
Outro núcleo era formado pelos jornalistas: Vinicius Petry, o editor, Rodrigo Ruiz, o fotógrafo, e Tuta Camargo na pele do repórter Caveirinha. Só não digo que foi o melhor papel que representaram em toda suas vidas com o atores porque isso seria desprezar a evoplução de cada um destes artistas, mas sei que cada um deles, viveu intensamente o projeto e doou-se com amor, prazer e dedicação. O Vini e o Tuta vinham do "Barão". Rodrigo vinha de "Agora é Festa". Os três atiraram-se de corpo e alma na montagem. O Vini compôs nosso samba enredo. O final da peça era simplesmente maravilhoso. Completamente surpreendente. Quando entrava em cena a escola de samba que estava ensaiando durante todo o decorrer do espetáculo, traduzindo a história da peça num samba enredo de uma hipotética escola da samba carioca, o público delirava de prazer. Era o inesperado. A surpresa.
Desculpem a falta de modéstia, mas os deuses do teatro conspiraram para que nossa montagem de "Boca de Ouro" atingisse um ápice e se constituísse naquilo que eu chamo de acontecimento teatral único.
Muito depois, assistindo a montagem do Zé Celso apresentada no Theatro São Pedro, tive o prazer de receber os cumprimentos de várias pessoas que enxergavam qualidades superiores na nossa encenação. A peça do Zé era linda. Espetacular. Mas o ator principal enterrava a peça ao construir um Boca vazio.